quarta-feira, 18 de maio de 2016

Entrevista com Mario Vargas Llosa

O romancista Mario Vargas Llosa, criador de obras-primas como Conversa na Catedral, A guerra do fim do mundo e Tia Júlia e o escrevinhador, é um dos maiores escritores da atualidade. Pela excelência de sua literatura, ganhou o Prêmio Nobel. Em suas palestras... Llosa se tornou um intelectual engajado. Suas causas são a liberdade e a democracia. O bom combate leva o autor peruano, que mora em Londres, a viajar pelo mundo. No giro mais recente, antes de vir ao Brasil, Llosa esteve na Argentina e no Chile. Ele está otimista com a América Latina, incluindo o Brasil. Llosa acha que nossa democracia sairá fortalecida, e não enfraquecida, do segundo processo de impeachment em menos de 30 anos. Abaixo trecho da entrevista concedida a revista Época na sexta (13):
O impeachment da presidente Dilma Rousseff representa uma ameaça à democracia, como diz o governo brasileiro?
–Não creio que a democracia brasileira esteja ameaçada. Ao contrário. O que está ocorrendo pode representar um fortalecimento da democracia no Brasil.
Por quê?
–O movimento popular que surgiu no Brasil é um movimento anticorrupção, de purificação da democracia, de melhoramento das instituições. E, sobretudo, de repúdio à ideia de que chegar ao poder seja um pretexto para enriquecer usando meios ilegais. Esse movimento mostra que havia mais corrupção do que parecia no Brasil, e rechaça a prática. A corrupção, em toda a América Latina, é uma gangrena contra as instituições democráticas.
O senhor vive em Londres. Como os europeus veem a situação atual do Brasil?
–A ideia de que há um golpe em curso no Brasil é o argumento principal da presidente Dilma Rousseff. Mas não acho que seja possível levar essa ideia a sério. Minha impressão é que estão sendo cumpridos todos os passos estabelecidos pela legalidade brasileira. Se houver impeachment, como parece que haverá, ele se dará estritamente dentro da moldura legal, que assim sai fortalecida. Creio que, se há uma ameaça à legalidade brasileira, essa ameaça está na corrupção, que cria um desencanto muito grande com as instituições democráticas.
Outro assunto muito discutido no país, além da corrupção, é a derrocada econômica, que está na raiz do processo de impeachment.
–Espero que o impeachment, se ocorrer, sirva como um aviso para evitar a desonestidade nos cargos públicos, mas não apenas isso. É preciso evitar também as políticas fiscalmente irresponsáveis. Creio que a irresponsabilidade, que é o populismo, está muito ligada à corrupção.
Qual a relação entre corrupção e irresponsabilidade fiscal?
–O populismo serve para ocultar, para disfarçar as transgressões da lei. Eu acredito que as duas coisas, populismo e corrupção, andam sempre juntas. [...].
Há dois tipos de governos de esquerda na América Latina. No Peru e no Chile, há responsabilidade fiscal e respeito às regras democráticas. Já no Equador, na Venezuela e na Bolívia – e na Argentina até recentemente –, o modelo é diferente. Por que isso acontece?
–Isso ocorre porque países como Equador, Venezuela e Bolívia são governados por mandatários que têm uma inclinação muito forte ao populismo. Mas minha impressão é que há uma reação na América Latina contra o populismo. Formou-se uma consciência de que o populismo significa sacrificar o futuro em troca de um presente que é muito efêmero. E o custo é sempre muito alto, principalmente para os mais pobres, que não têm como se defender de uma inflação alta, por exemplo. Minha visão da América Latina não é 100% otimista, porque na América Latina sempre podem ocorrer catástrofes. Mas tenho a impressão de que se compararmos a América Latina atual com a de 30 anos atrás há um progresso considerável. No passado tínhamos ditaduras militares e revoluções armadas. Agora temos democracias imperfeitas, mas que podem ser corrigidas.
O senhor é peruano. Como vê o caso específico do Peru, governado pela esquerda e considerado um exemplo de boa gestão econômica por organismos internacionais?
–É muito interessante o que se passa no Peru. Desde que caiu a ditadura, no final do século passado, houve três, quase quatro governos distintos que mantiveram o respeito à democracia política e – algo que é muito raro na América Latina – uma continuidade da política econômica. Uma política com abertura dos mercados, integração aos mercados do mundo, e incentivos aos investimentos. Com isso, reduziu-se bastante a pobreza extrema e houve um crescimento significativo das classes médias. Oxalá essa continuidade, que é rara também na história do Peru, se mantenha.
O senhor já foi fascinado pelo socialismo cubano. Pode falar sobre isso?
Minha geração queria ver no socialismo cubano um socialismo diferente, que não havia passado por um partido comunista, que parecia aberto à coexistência de ideias e valores diferentes. Parecia que finalmente teríamos uma revolução com liberdade e justiça. Hoje creio que tudo isso era um mito. Desde o princípio Fidel Castro optou por uma linha de socialismo soviético, que lhe dava um poder absoluto. Mas o desencanto demorou a chegar, como acontece sempre com os mitos que demoram em se desfazer. [...].
O senhor escreveu um livro sobre a civilização do espetáculo. Ela é uma ameaça à democracia?

–Esse é outro problema do nosso tempo. A alta cultura sempre proporcionou diversão e entretenimento. Mas a diversão não é a função principal da cultura, como se pensa hoje. A cultura tem como missão fundamental manter vivo o espírito crítico. A cultura nos coloca em contato com mundos criados, artísticos, que são confrontados com o mundo real. Ela nos faz ver o mundo real desde a perspectiva de mundos imaginados, geralmente mais ricos, mais intensos, mais perfeitos. Isso cria em nós um desassossego, uma inconformidade em relação ao mundo real, e é daí que nasce o espírito crítico – que é o elemento transformador das sociedades. Uma sociedade culta no sentido tradicional da palavra é mais difícil de enganar por governos mafiosos e autoritários. Se tudo se torna frívolo, puro entretenimento, perde-se esse efeito crítico e transformador da cultura. Leia na íntegra

terça-feira, 17 de maio de 2016

“Hipocrisia” por Luiz Fernando Verissimo

Durante muito tempo cultivou-se o mito do Brasil como uma espécie de jardim de inocentes num mundo conspurcado. Até no nosso autodesprezo havia um certo tom triunfal de uma raça diferente esperando sua vez de entrar na História. Éramos ineficientes mas simpáticos, atrasados mas cordatos, pobres mas engenhosos. Assim como a Amazônia era a reserva de oxigênio do planeta, o brasileiro era a sua reserva de candura. Conseguiríamos o milagre de nos transformarmos em potência sem cometer nenhum pecado antibrasileiro, como o da violência ou da insolência imperial. Nossos vilões nos roubaram este mito da amabilidade congênita. Certamente, nenhuma ilusão sobre a candura brasileira sobreviverá a estes últimos anos de ódio e intolerância. Temos uma história cheia de canalhices esquecidas ou camufladas, mas está sendo demais para a nossa hipocrisia este período concentrado de violência entre brasileiros. Os mesmos vilões nos arrancaram da confortável ficção de que poderíamos crescer sem deixar de ser inocentes, apenas como prêmio ao nosso tamanho e aos nossos bons sentimentos. Mas não parece haver dúvida de que será preciso pelo menos uma geração para deixarmos de nos enganar. E para voltar à hipocrisia. Publicado no Globo, domingo (8)